1/25/2015

ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ E OSWALDO GOELDI





ENCONTRO ENTRE CAUBY CRUZ E OSWALDO GOELDI

Por  Ney Ferraz Paiva




O silêncio, e o que mais aconteça.
Antonio Gamoneda



Começo o meu relato. Um rascunho. Um esboço. Um estudo. Vou tentar aproximar alguns turnos de escrita e gravura. Cauby Cruz e Oswaldo Goeldi. Tantas histórias houve, há entre eles. É só deixar haver. O rosto, o traço. Ver que estão num mesmo sonho. Neste sonho é sempre noite. Num primeiro momento pressente-se o lugar, e a textura desolada da paisagem se abre sobre dorsos de corpos que vagam como espectros, vivendo de pequenos afazeres, bicos, ocupações incertas e daí de volta ao mais miserável dos quartos. O legado sombrio que se esparrama pelo mundo e pela história que os cerca. O legado que nada deixa além da escuridão. Uma espécie de errância fundamental paira sobre eles e o mundo deles. Depois da porta, há a noite, através da qual os indeléveis passos vão se tornando progressivamente mais intensos, tentando culminar num desfecho. Mas o mundo de sombras permanece inescrutável. Todos seguem ligados aos mesmos destroços da noite. Estamos no distante centro de uma cidade que é toda ela um submundo. Virada contra si mesma. Sem respirar o tempo presente e deteriorada pelo futuro. Apagada de sua própria vida. Tudo é operado para que a cidade não surja de dentro do habitante. No sonho, como na vida, o enredo pode resultar um curto-circuito... De repente, surge um homem sobre um trecho de trilhos, ele assinala para a locomotiva que se aproxima e que nem em cem anos vai tornar-se um TGV (sigla do trem-bala francês). Move no breu o braço inútil. No sonho, ele é o poeta. Pelo avesso, na vida, nós somos ele. No sonho, que permanece noite, o homem e a máquina refletem a ordem e a conexão vigente de uma realidade injusta. Noutro ponto da paisagem, outro homem ostenta um guarda chuva vermelho aberto. Uma cena que não se refere ainda a um alerta das previsões climáticas. Antes, simula todo um cenário de mudança, transformação ao mesmo tempo criadora, intelectual e artística, e que talvez acentue ainda mais o contexto de espera. A chuva nos surpreende e aprisiona a um canto, como um perigo que está progredindo. Não se sabe o que é, está apenas lá, de longe, com as garras abertas. Um vislumbre. Uma fantasmagoria. “O inseto em si não pode ser mostrado”, opina Kafka. A forma como o artista, e sobretudo o escritor, se envolve com a própria criação o vincula ao mundo que avista. Cauby se retirou por mais de vinte anos para escrever – e escrevendo fez cessar a escrita. Escrever é um aborrecimento. Logo ao se iniciar deve-se retomar o silêncio. Goeldi, que nunca foi um buscador, um que estivesse à procura, tornou-se cada vez mais recuado e distante. “Tão solitário, Goeldi!”, grita Drummond. Fez longa carreira pelo mundo, ainda que o mundo lhe fosse um lugar distante, de poucas e raras aproximações. Como Cauby, sentia-se à parte da confraria. Com efeito, criar não é nada dócil, mesmo se a criação for gentilmente autorizada pelos herdeiros, mesmo se patrocinadores institucionais forem honrados (e ironia maior: ainda bem que no nosso caso não são, não podem ser, nos impõem a fazer e pronto!) ou se por uma série de razões se concorda em não pensar no assunto – sem se mover do luto, da vergonha, do pudor, saudosos de todos os falecimentos. E joga-se os velhos jogos. E fica-se do lado da lei. E toma-se parte do mesmo núcleo da moral oficial & do poder. E a arte vira esse lugar de cavaleiros pomposos. Arte Filosofia Religião Ciência produzidas em cadeia para abastecer os mercados da beleza e do cosmético, da diversão e do laser, do luxo e do bom gosto exacerbado - dominador - amado - cultuado. O convite de Cauby e de Goeldi é outro: não apenas sentir a verdade na carne; ela como algo mantida conservada em álcool – e sim de forma nietzscheana: a verdade devorada nos rituais da fome... “sofrer a mesma fome” (Cauby nos impele), engolir e ser engolido na longa noite de antropofagia que é o paraíso...


Ney Ferraz Paiva
Belém, janeiro, 2015.



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