P E R P L E X I D A D E D O S D I A S
P I N T A R C O M P A L A V R A S
A l f r e d o F r e s s i a
Humor, sátira, ironia. Sinais de uma distância
assumida, de uma explícita recusa e de um desconforto profundo. Não, Francisco
ainda não quer deixar- se impregnar pela cólera nestas “charges
escritas”, estas aguafuertes verbais
tão latino-americanas. É evidente que a indig- nação do satírico e a do cidadão
frente ao neo-fascismo no Continente
(e no mundo) ainda navegarão mais
longe na “procelosa tinta”, eu tenho essa melancólica certeza. Mas por enquanto, ainda –sempre
ainda– há lugar
para o humor
fino que tempera a
ironia. O motor da poesia de um
Gregório de Matos era a
cólera. Cólera amarga,
funesta, aquela que escreve mas
que, se pudesse, trocaria a pena pela espada – e quantas vezes
a pena do baiano se torna espada afiada. A indignação de
Francisco ainda é a de grande parte da sociedade brasileira hoje. É uma cólera
que ronda a crônica, no sentido que dá
conta dos nossos dias e que se torna sinal destes tempos contraditórios, quando
ainda imaginamos ter liberdade de expressão mas nada ou quase nada
podemos frente ao Mal.
Podemos escrever? Sim, por
enquanto. Sorrir –sorriso quase amarelo– também
podemos. Um significante, dois
significados. Por ora, e nesta plaquette, essa fórmula mágica da
história literária não obedece à mera
cautela. Ainda não. Ela está aqui só para fazer rir. Castigat ridendo
já não os costumes coletivos, mas os
ovos da serpente, esses que a pena de Francisco detecta e que podem eclodir, ou, quem sabe, que
já quase... Tempos, Cronos,
crônicas, sátira dos dias que
vivemos. Sorrisos, ainda.
Isto é o que o leitor deve encontrar nestas páginas de pura criatividade
de um observador que, ele sim, poeta, editor, cronista, nos
representa.
POLÍTICA
E ESTÉTICA:
O HUMOR
COMO VIA
POSSÍVEL
DIANTE DO
IMPOSSÍVEL
B i a n
c a D i a s
Política
e estética estabelecem fecundo diálogo neste trabalho de Francisco. Suas charges exploram uma dimensão
importante da relação entre o político e
a forma, ou entre as formas do político: uma invenção que só o humor
pode abarcar como ideia
e experiência.
No
âmbito do político, Francisco tece uma aguda
crítica sobre os efeitos e configurações daquilo que se corrompe ou nasce
corrompido por estrutura,
a saber, a própria
estrutura da linguagem. Em suas charges, as
formas estética e política não são
indiferentes uma à outra e possuem uma peculiar capacidade indutora.
A via
da transfiguração proposta pelo humor alucina a língua e aproxima desejo e linguagem, que não são e nunca poderão ser indiferentes. Embora a melancolização de nossos tempos
totalitários seja um em- puxo na contramão de qualquer
invenção, Francisco se
arrisca nessa façanha.
Não sei
se é possível escapar ao poder através do aspecto cortante e agudo do humor, mas no seu gesto paradoxal há uma
abertura ao pensamento que é também
uma maneira de se colocar em causa na
relação com a democracia, na possibilidade viva e pulsante da circulação
da palavra, capturando a fina flor da contingência diante do impossível de respirar.
Uma fresta de
vida – invenção,
subversão ou fabulação – que pode clarear
momentaneamente zonas do real. Mordaz e
irreprimível, Francisco valoriza o humor justamente
por sua particular característica subversiva. Característica esta, importa
ressaltar, que permite a construção de vias alternativas de desafio e enfrentamento através
da palavra e de
deslocamentos na língua.
As
charges dizem o que não pode ser dito de outra maneira. Há sempre uma saída
indireta, um caminho desviante, um ato de transgressão. Criam caricaturas
para ir ao ponto exato da inquietação,
trans- formam afetos e formas de se afetar numa
operação refinada, das mais
elevadas, ao lado da sublimação. Se a sublimação
eleva
seu objeto à dignidade de coisa, como nos
propõe o psicanalista
Jacques Lacan, o humor extrai, da indignidade de seu objeto, um prazer
nobre e sofisticado que, se não faz desaparecer a indignidade, pelo menos
a torna suportável.
O humor, então, também resiste, mesmo diante
do horror e do sofrimento. É a resistência
política que enfrenta o inimigo e a
censura por meio da astúcia, é a resistência à própria morte que enfrenta as
agruras da vida, transformando desgraça em graça, sintetizando a corrupção
estrutural da linguagem de maneira a fazer com que cada um possa se responsabilizar pelo seu gozo e, mais
do que ser incorruptível ou
virtuoso, que cada um possa
encontrar uma forma singular de se enlaçar, sabendo que há sempre um resto
impossível de simbolizar e que, frente a ele, podemos sucumbir, ou criar e
inventar as frestas e as festas possíveis na linguagem.
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