A RETÓRICA DA GUERRA
AO VÍRUS
Acácio Augusto
Segue-se com a
retórica da guerra ao vírus. Se vc não é patrão, nem governante, não caia nessa.
Além dela não fazer sentido, atende só aos interesses dos que almejam o
controle social total antes, durante e após a pandemia. Explico:
I
A guerra é um
conflito armado, público e ‘justo’. Toda guerra segue uma espécie de roteiro,
sujeito às intempéries do acaso, mas com uma forma específica. Na guerra há
objetivos, um inimigo claro, etapas a serem cumpridas. A guerra é como um
teatro sangrento. A guerra não tem nada a ver com vírus.
II
O uso não é novo. Em
V&P*, M. Foucault demonstra como a tecnologia política disciplinar,
obra moderna do saber militar, segue o modelo da peste. Isso justifica o
controle total da circulação de pessoas como forma de contenção da contaminação
e a necessidade de sacrifício coletivo.
III
No entanto, ao
insistir na metáfora da guerra, perde-se de saída. Por dois motivos: um “técnico”,
pois pressupõe que o vírus está fora, quando está dentro. Logo, como conter a “invasão”
de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtualmente cada um dos
corpos?
IV
O outro é
ético-político: médicos e demais trabalhadores não são soldados. Mas ao
insistir na metáfora da guerra contra um não inimigo (o vírus é invisível e não
declarou guerra a ninguém) a conflituosidade social aumento, fazendo das
pessoas reais e visíveis, os reais inimigos.
V
Essa imagem, criada
pelos que governam, não apenas corrói a solidariedade social (essa sim
eficiente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus) como vai elegendo
pessoas e grupos como alvos. Nesse momento entram os exércitos e as polícias
como elementos
“necessários”.
VI
Desta maneira, os
controles securitários são justificados como medidas duras, mas necessárias,
exceção. Mas a verdade é que eles são apontados como solução de um problema que
eles mesmos criaram ao usarem a retórica da guerra. E isso não é o pior, pois
essa lógica se espalha.
VII
Se espalha porque os
cidadãos, em geral, sentem-se alistados nessa guerra fictícia, ou melhor,
fabricada pela retórica da guerra. Mas como o vírus é invisível, quem vira o
inimigo a ser combatido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social.
Exemplos não faltam.
VIII
Esse inimigo pode
ser os chineses, como insiste Trump e seus funcionários da ‘familícia’ BR. Pode
ser o imigrante, como foi na Itália. Moradores de rua ou alguém que
desrespeitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos os que produziram
essa situação. Racismo de Estado.
IX
Militares,
políticos, gestores, empresários e corporações caridosas, enfim, todos que
investiram na retórica da guerra, se tornam, magicamente, os heróis e
salvadores de uma condição que eles mesmos produziram. Vejamos o que já
acontece no Brasil, onde a conduta fascista grassa.
X
Tudo que li (posso
estar errado, pois não sou especialista) diz que testagem em massa e uso de
máscaras, além dos cuidados com higiene e com os grupos mais vulneráveis, são
as principais medidas de contenção e/ou mitigação da epidemia. Mas curiosamente
faltam máscaras e testes.
XI
Será que é muito
difícil um esforço excepcional para produção de máscaras e testes em massa?
Porque são tão rápidos em expandir os controles eletrônicos, as declarações
de estado de sítio, a imposição do home
office, mas tão lentos para produção de testes e máscaras?
XII
Também sabemos que o
distanciamento social é necessário, mas se declara quarentena e estado de
sítio, mas não se investe em testes e equipamentos de proteção. Sabemos que
falta até para os médicos. Para não falar de entregadores e demais
trabalhadores. O que passa então?
XIII
O que passa é que ao
falar de guerra, deixa-se claro que não se trata de conter a epidemia, mas de
manter e expandir o controle das ruas, das vias de comunicação, da circulação
de bens, pessoas e mercadorias. Como sabemos, o poder é logístico. A retórica
da guerra é isso.
XIV
Os Estados e as
corporações possuem interesses próprios que são antagônicos aos da vida em
comum. Quando eles chamarem, não se aliste nessa guerra fabricada. A melhor
maneira de lidar com a situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência, a
ação direta e a defesa da vida.
XV
Como cantou a banda anarcopunk
«Crass»: “eles nos devem
uma vida. Não entregue a sua à eles”. O Estado e as corporações se interessam
por sua vida apenas na medida em que vc está disponível a servir. E vida em
servidão não é vida, mas sobrevida.
* Vigiar e Punir:
Michel Foucault.
ACÁCIO AUGUSTO,
Professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da
UVV-ES e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES,
pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária/PUC-SP) e bolsista
Pós-Doc CAPES na UVV-ES. Doutor em Ciências Sociais (Política) pela PUC-SP.
Autor de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Rio
de Janeiro: Lamparina, 2013. Organizador da Coleção Ataque, da Editora Circuito
(RJ). Colaborador de Verve, revista do Nu-Sol.
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