3/24/2020

Coronavírus IV. Debate: Acácio Augusto




A RETÓRICA DA GUERRA AO VÍRUS

Acácio Augusto










Segue-se com a retórica da guerra ao vírus. Se vc não é patrão, nem governante, não caia nessa. Além dela não fazer sentido, atende só aos interesses dos que almejam o controle social total antes, durante e após a pandemia. Explico:


I
A guerra é um conflito armado, público e ‘justo’. Toda guerra segue uma espécie de roteiro, sujeito às intempéries do acaso, mas com uma forma específica. Na guerra há objetivos, um inimigo claro, etapas a serem cumpridas. A guerra é como um teatro sangrento. A guerra não tem nada a ver com vírus.

II
O uso não é novo. Em V&P*, M. Foucault demonstra como a tecnologia política disciplinar, obra moderna do saber militar, segue o modelo da peste. Isso justifica o controle total da circulação de pessoas como forma de contenção da contaminação e a necessidade de sacrifício coletivo.

III
No entanto, ao insistir na metáfora da guerra, perde-se de saída. Por dois motivos: um “técnico”, pois pressupõe que o vírus está fora, quando está dentro. Logo, como conter a “invasão” de algo que já está entre nós e que habita invisível e virtualmente cada um dos corpos?

IV
O outro é ético-político: médicos e demais trabalhadores não são soldados. Mas ao insistir na metáfora da guerra contra um não inimigo (o vírus é invisível e não declarou guerra a ninguém) a conflituosidade social aumento, fazendo das pessoas reais e visíveis, os reais inimigos.

V
Essa imagem, criada pelos que governam, não apenas corrói a solidariedade social (essa sim eficiente na contenção e mitigação dos efeitos do vírus) como vai elegendo pessoas e grupos como alvos. Nesse momento entram os exércitos e as polícias como elementos
“necessários”.

VI
Desta maneira, os controles securitários são justificados como medidas duras, mas necessárias, exceção. Mas a verdade é que eles são apontados como solução de um problema que eles mesmos criaram ao usarem a retórica da guerra. E isso não é o pior, pois essa lógica se espalha.

VII
Se espalha porque os cidadãos, em geral, sentem-se alistados nessa guerra fictícia, ou melhor, fabricada pela retórica da guerra. Mas como o vírus é invisível, quem vira o inimigo a ser combatido? Virtualmente, qualquer um ou qualquer grupo social. Exemplos não faltam.

VIII
Esse inimigo pode ser os chineses, como insiste Trump e seus funcionários da ‘familícia’ BR. Pode ser o imigrante, como foi na Itália. Moradores de rua ou alguém que desrespeitou a quarentena etc. Em resumo: qualquer um, menos os que produziram essa situação. Racismo de Estado.

IX
Militares, políticos, gestores, empresários e corporações caridosas, enfim, todos que investiram na retórica da guerra, se tornam, magicamente, os heróis e salvadores de uma condição que eles mesmos produziram. Vejamos o que já acontece no Brasil, onde a conduta fascista grassa.

X
Tudo que li (posso estar errado, pois não sou especialista) diz que testagem em massa e uso de máscaras, além dos cuidados com higiene e com os grupos mais vulneráveis, são as principais medidas de contenção e/ou mitigação da epidemia. Mas curiosamente faltam máscaras e testes.

XI
Será que é muito difícil um esforço excepcional para produção de máscaras e testes em massa? Porque são tão rápidos em expandir os controles eletrônicos, as declarações de  estado de sítio, a imposição do home office, mas tão lentos para produção de testes e máscaras?

XII
Também sabemos que o distanciamento social é necessário, mas se declara quarentena e estado de sítio, mas não se investe em testes e equipamentos de proteção. Sabemos que falta até para os médicos. Para não falar de entregadores e demais trabalhadores. O que passa então?

XIII
O que passa é que ao falar de guerra, deixa-se claro que não se trata de conter a epidemia, mas de manter e expandir o controle das ruas, das vias de comunicação, da circulação de bens, pessoas e mercadorias. Como sabemos, o poder é logístico. A retórica da guerra é isso.

XIV
Os Estados e as corporações possuem interesses próprios que são antagônicos aos da vida em comum. Quando eles chamarem, não se aliste nessa guerra fabricada. A melhor maneira de lidar com a situação é pelo autocuidado, o apoio mútuo, a ciência, a ação direta e a defesa da vida.

XV
Como cantou a banda anarcopunk «Crass»: “eles nos devem uma vida. Não entregue a sua à eles”. O Estado e as corporações se interessam por sua vida apenas na medida em que vc está disponível a servir. E vida em servidão não é vida, mas sobrevida.




* Vigiar e Punir: Michel Foucault.



ACÁCIO AUGUSTO, Professor credenciado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UVV-ES e no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES, pesquisador no Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária/PUC-SP) e bolsista Pós-Doc CAPES na UVV-ES. Doutor em Ciências Sociais (Política) pela PUC-SP. Autor de Política e polícia: cuidados, controles e penalizações de jovens, Rio de Janeiro: Lamparina, 2013. Organizador da Coleção Ataque, da Editora Circuito (RJ). Colaborador de Verve, revista do Nu-Sol.






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