por Marly Silva
«Precisamos ler livros que nos afetam como um desastre, que nos
magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amamos profundamente, mas
do que a nós mesmos, como ser banido para fora da floresta longe de todos. Um
livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de
nós». Franz Kafka
Publicado há quase
três décadas como produção independente do jornalista Lúcio Flávio Pinto e do
cartunista e editor Luís Pinto, o Jornal
Pessoal tornou-se um símbolo vivo de resistência política no campo jornalístico
na Amazônia e no Brasil; a ousadia de praticar a liberdade de imprensa definindo
pautas em cima de fatos de relevante interesse público, fatos quase sempre envoltos numa engenharia de
cumplicidades obscenas e mafiosos interesses, flagrantes numa região de
fronteira econômica, e envolvendo até juízes e um Tribunal, lançou esta rica
experiência numa dialética de prazeres e tormentas.
Os prazeres estão
na satisfação de “fechamento” do jornal a cada quinze dias, no reconhecimento
público pela qualidade das edições mantidas ao longo de vinte e oito anos, nas
homenagens e prêmios nacionais e internacionais, nos convites para os debates e
aulas públicas e na gratificante sensação de ter atiçado, com um sopro de luz, um
olhar curioso e detido sobre a Amazônia
ocultada, numa geração de leitores que praticamente “nasceram” juntos com o
jornal e puderam acompanhá-lo até os dias de hoje.
Quanto às
tormentas, elas se arrastam num embate sem fim contra as duras investidas de
intimidação para calar a voz do JP, embate travado com aqueles que, atingidos
pela crítica e intolerantes à mesma, paradoxalmente ignoram o dispositivo
democrático do direito de resposta, amplamente assegurado pelo JP, e optam pela
via do Direito, da esfera judicial, para tratar aquilo que pede, pelo bom senso
e sabedoria, para ser enfrentado e resolvido na esfera pública e jornalística do
debate, da argumentação e contra argumentação. Este embate já dura um tempo demasiadamente
longo e quase fez sucumbir essa rica experiência nos anos de 2005 e seguintes.
Mas o JP resiste, “para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós” paraenses!
A ESCRITA COMO RESISTÊNCIA AO PROCESSO KAFKIANO
No Tribunal, o
jornalista é confrontado com três poderes dominantes e emblemáticos no nosso
país: o latifúndio, a grande imprensa empresarial e o próprio poder judiciário
no que ele tem de perigoso, controverso e ameaçador no interior de si mesmo.
Nessa esfera de poder, sua escrita se faz arma de autodefesa na luta pela
preservação do jornal e da sua própria liberdade. Trata-se de uma escrita que
não cede, sim! inclusive porque não cede à pressão daquele tipo de leitor do JP
que, cansado da refrega, e não sem razão, já não quer mais saber daquilo que o
jornalista não pode deixar cair no esquecimento: o embate com os Maiorana, o
mais longo e difícil de todos, seja pelo embaraço que lhe causa o perfil do
acusador, os irmãos-dirigentes do jornal O Liberal onde o jornalista trabalhou
por quase duas décadas e lá fez amigos, seja pela estratégia cruel de punição
usada pelos mesmos: uma produção em série de ações judiciais estapafúrdias,
assentadas no pressuposto de um suposto “dano moral”, nunca efetivamente
demonstrado, jamais reconhecido pela sociedade e tampouco consensual na
numerosa família que abriga os acusadores-ditos-vítimas do jornalista.
A descrição
minuciosa das ações judiciais na rotina dos seus procedimentos, o jogo semântico
da retórica jurídica, a etnografia de ação dos agentes que integram o corpo
hierárquico de sentenciadores, o relato das agressões escritas e verbais
perpetradas por seus acusadores e até a cenografia dramática da agressão física
cometida pelo segurança de um deles, passaram a integrar as páginas do seu jornal
sem que jamais isto tivesse sido imaginado pelo seu criador.
Os leitores que
reclamam o “retorno a ele mesmo” no JP, sobretudo a partir de 2005, quando a
investida contra sua pessoa se deu com a
brutalidade da força física consumada num ataque covarde, esquecem aquilo
que o jornalista está condenado a lembrar: o processo judicial
kafkiano movido à base da conivência do Tribunal com seus algozes, mesmo
sabendo-se serem eles, os donos do jornal, praticantes de negócios empresariais
moralmente condenáveis e delituosos no seu envolvimento com clientes do mundo
corporativo-midiático e governos, além de réus em ações criminais em diferentes
esferas do poder judiciário brasileiro. Portanto, que moral têm os acusadores,
perante a sociedade e a instituição jurídica, para demandar a condenação de um
cidadão por suposto dano moral? Um cidadão que sempre respeitou a linha
fronteiriça entre a vida privada e a vida pública dos personagens objeto de seu
jornalismo? Essa flagrante injustiça atiça e agrava a revolta contra a ação do
Tribunal, ainda mais porque manter-se em estado de permanente prontidão e
atento à agenda de prazos processuais de ações, que chegaram ao número de
trinta e três, foi uma dura condição imposta à sua rotina, virada de
ponta-cabeça. A vida emparedada pelo rito burocrático de idas e vindas frequentes
ao Fórum, leitura e releitura dos autos, produção de peças e recursos,
atualização de papéis e outras tantas providências extra-Fórum, configura-se,
para um homem que se fez dono do seu trabalho e de seu tempo de trabalho, uma
estratégia de aprisionamento enlouquecedor que visa dobrar-lhe a espinha dorsal,
levando-o ao esgotamento físico e mental de modo que nada lhe reste de tempo
livre para o cuidado de si e a prática de seu ofício. Uma estratégia de guerra,
que visa à destruição lenta e gradual do indivíduo, à perda do seu entusiasmo
para a vida; enfim, uma estratégia de aniquilamento como diria Foucault. E no
fluxo incessante dos processos e sentenças, o conteúdo das peças jurídicas acaba
transbordando para as páginas do JP, única tribuna livre onde a qualquer
momento o jornalista pode manifestar em plenitude seu desabafo e seu grito de
revolta contra a injustiça e a infâmia que o aprisionam.
CONDENADO A SER LIVRE!
Como estrategista
de sua autodefesa (ele tornou-se rábula por necessidade), construída à base de
sua firme convicção de inocência, Lúcio Flávio Pinto foi se fazendo arquivista
e documentarista de sua própria história, de modo que a cada condenação ou
absolvição personagens envolvidos no seu drama são apresentados ao público, um
por um, tornando-se familiares a seus leitores. Suas sentenças são
esquadrinhadas, sintetizadas, analisadas, e apresentadas na forma de artigos no
JP, convertendo-se em lições de jurisprudência acerca de litígios referentes à
questão da liberdade de imprensa na Amazônia, região de fronteira superlativa, onde
existe e para onde convergem interesses, vontades e desejos conflitantes, capitalistas
e anticapitalistas, utópicos e apaixonantes, venais e destruidores. Seus
questionamentos em torno das investidas mais virulentas sobre a região incomodam,
desde sempre, a muitos que detêm o poder econômico e o poder político. O
jornalista aprendeu a pensar rápido junto com o pensamento complexo e lento que
se forjou sobre esta enigmática região, e escreveu livros sobre o que aprendeu
na sua longa e extraordinária experiência de repórter. Mas com um Tribunal no
seu caminho, foi obrigado a um atalho; a ler e reler os mesmos processos e
sentenças que acabaram objeto de livros, dossiês, matéria de debates, à sua
revelia. A verdade é que por onde quer que o cerquem, ele sempre encontra uma
saída ao alcance de suas mãos: a caneta e o bloco de papel.
Somos condenados a
ser livres, sentenciou Sartre. Eis uma imagem que cabe como uma luva ao Lúcio
Flávio Pinto, que fez do seu JP minimalista uma experiência radical de escolha pela
liberdade de pensamento, na contramão das receitas de conquista de “liberdade
financeira” vendidas mensalmente pela “Você S/A”. Na peleja pelo exercício desta
radicalidade, ele nos ensina que é na ética do indivíduo que se assenta a construção
do processo de libertação, forjada na luta diária contra a ditadura dos poderes
oficiais e majoritários, reais e simbólicos.
A CRÍTICA HUMORÍSTICA NO TRAÇADO DE LUIS PÊ
Tão mais cruel a
mordida adversa,
Mais corrosiva a
chaga, mais triste o choro,
Mais tenaz o
amigo, mais sensível seu abrigo...
(Émile Armand,
poema escrito na prisão, 1940)
As charges, cartuns
e caricaturas de Luís Pinto que ocupam com destaque a primeira página do jornal
constroem uma imagem-força poderosa, que antecipa e anuncia o texto com uma
dosagem apimentada de ironia e humor, que ora desnuda o “rei” pelo que tem de
risível em atos e gestos grotescos, ora retrata um cenário melancólico das
riquezas artificiais edificadas à base do incessante sacrifício da beleza solene
da floresta-rio ou da floresta-serra e encenação de seus caricatos demolidores.
Outras vezes, a fina ironia se revela nos traços que tornam inconfundíveis
personalidades da velha política baratista e dos novos coronéis, como na série
sobre os Barbalho, tucanos & outros bichos embaralhando cartas para decidir
o eterno retorno do mesmo à côté de uma garrafa de pinga... Outras vezes, a
ironia recai sobre a desastrada e autoritária intrusão do poder central na
região, como na impagável caricatura de um Lula cangaceiro vendo-se no espelho
como um Bonaparte. Invariavelmente, LuísPê, como assina, consegue nos levar ao
riso e até rir de nós mesmos. Com a força do seu traçado, a imagem gráfica no
JP potencializa a escrita incômoda, áspera, incisiva, criando uma feliz
sintonia de linguagens entre os dois irmãos-amigos; uma amizade que se afirma
na mútua admiração.
Lúcio Flávio Pinto
tem consciência da singularidade da experiência solitária do JP no campo
jornalístico, e do desafio que colocou a si mesmo, ao decidir encarar esta
empreitada na companhia de uma única pessoa: o amigo-irmão, chargista, artista
gráfico e músico, que além de assinar os desenhos da primeira página faz mini
incursões internas com outras ilustrações, quando lhe apraz e é seu editor. O JP
é o que é pela irreverência, o humor e a sátira inteligente traduzidos com
talento nos traços de LuisPê, ele também vítima do mau humor próprio de
ditadores e tiranos que não toleram que se riem deles. Foi este tipo de
intolerância que levou Luís Pinto à perda do emprego de chargista em O Liberal,
no dia seguinte em que decidiu submeter o patrão, um dos donos do jornal, ao teste
de resistência à ironia de seu traçado. Assim, seu gesto de irreverência e
coragem reatualizou para todos nós um dos extraordinários poderes da arte cômica
e da arte crítica: provocar incômodo aos donos do poder. Testar-lhes a
capacidade de tolerância e civilidade já que costumam apresentar-se como arautos
da modernidade, quando em realidade, quase sempre, não passam de simulacros do
que professam de si mesmos. A manchete-ilustrada “O rei da quitanda”, uma das
capas mais provocadoras e também um dos números mais lidos da coleção JP,
resultou em mais um ato de intolerância: uma outra ação judicial contra Lúcio
Flávio Pinto por “dano moral”!
Incapazes de rirem
de si mesmos e do ridículo da arrogância e da presunção humana, os donos do
poder local preferem refugiar-se no Tribunal de Belém, onde apostam na cumplicidade
da acolhida, para de dentro da corte acionarem seus revides mesquinhos contra a
arte libertária do pensamento, do julgamento e do riso, fundamental numa cidade
estrangulada pelas leis do silêncio. Uma cidade no século XXI que mais se
parece à remota Dublin de Joyce, colônia inglesa atrasada e convulsiva... Por
essa razão é difícil aceitar sem espernear a existência de um JP-Prometeu
tropical, aprisionado nos porões de um Tribunal de arbitragem; precisamos dele livre
como do ar que se respira.
A VONTADE DE PUNIR E A DESMORALIZAÇÃO DO TRIBUNAL
Doze de março de
2013 é uma data emblemática para a história da perseguição política ao
jornalismo independente no Pará, tendo como principal protagonista o Tribunal
de Justiça do Estado. Foi nesta data que o jornalista Lúcio Flávio Pinto
depositou na conta do poder judiciário o valor monetário de R$ 25.116,75,
recolhido na campanha pública Somos Todos Lucio Flavio Pinto, criada pelos
amigos em solidariedade ao jornalista-réu. O Tribunal do Pará o condenou e o obrigou
a pagar este valor aos herdeiros e sócios do empreiteiro-grileiro Cecílio de
Rego Almeida, como indenização por supostos “danos morais”. O dano teria se
materializado no fato do jornalista ter usado a expressão “pirata fundiário”
para se referir ao senhor Almeida em matéria publicada no JP no ano de 1999. O
jornalista alega que o uso da expressão foi um insight que lhe ocorreu de
súbito, provocado pelo espanto e raiva de que foi possuído ao descobrir que o
mesmo vinha agindo à margem da lei para se apropriar de uma vasta extensão de
terras públicas na região do rio Xingu, município de Altamira, no Pará. Para se
ter uma ideia, a área de 4,7milhões de hectares equivale a um quarto do estado
de São Paulo.
Apaixonado pela
Amazônia e profundo conhecedor de seus problemas fundiários, o jornalista revoltou-se
com tamanha audácia do empreiteiro sulista, flagrado na prática do que se
denomina de grilagem de terras, um crime grave contra o patrimônio público, já
que envolve a transferência fraudulenta, via cartórios de registro de imóveis, de
terras devolutas para o domínio privado. Mesmo com meio século de atuação
profissional sempre cobrindo a região, o jornalista ficou escandalizado com o
que vira. Sua denúncia possibilitou às autoridades competentes que a transação fosse
sustada e os responsáveis punidos, inclusive o grileiro que escapou da prisão
pela idade avançada. Em 2011, o Ministério Público Federal determinou a anulação
de todos os registros de imóveis no cartório de Altamira em nome de empresas
controladas pelo megagrileiro, falecido três anos antes. Ficara assim
comprovado que o bem sucedido empreiteiro do Paraná não passava de um grileiro
de vastas terras no Pará, logo, um “pirata fundiário”, distinção onomástica usada
para chamar a atenção para a gravidade do caso já que tantos são os grileiros
“peixes menores” que transitam na fronteira.
A onde está a
ofensa ou o dano moral de que o jornalista é acusado? Qual a lesividade da
expressão pirata fundiário quando aplicada a quem se apossa de terra pública?
Os nomes são criados numa língua para designar o atributo das coisas e dos
seres e para nomear os indivíduos. Foi o que fez o jornalista. Portanto, fica
evidente que não há ofensa nenhuma, e que a ação por danos morais, movida pelo
empreiteiro e acolhida pelo Tribunal, não passou de um ato de vingança contra o
jornalista que se interpôs, com a sua competente reportagem-denúncia, no
caminho do enriquecimento ilícito e evitou que um crime grave fosse consumado. Mas a ação também pode ser lida como um meio
de testar a moralidade do Tribunal paraense, ou seja, sua seriedade e a
imparcialidade nos acolhimentos e julgamentos de ações civis e penais. O senhor
Almeida pode ter tido a intenção de fazer um teste de probidade com o nosso
Tribunal do tipo “se colar, colou”. E não é que colou?! O depósito supracitado é
a prova inconteste da imoralidade do Tribunal do Estado do Pará, expressa na
condenação kafkiana do jornalista, testada pelo empreiteiro em vida e
confirmada pelos herdeiros que receberam a “bolada” saída do bolso dos
contribuintes. Amiga do jornalista e solidária à sua causa desde a primeira
ação sofrida no início dos anos 1990, confesso que não consegui fazer este
depósito. Simplesmente não consegui, não colaborei monetariamente. Procurei
prestar-lhe minha solidariedade por outros meios, como das vezes anteriores, mas
reconheço que a recusa do jornalista de recorrer ao tribunal federal e decretar
a morte do processo na mesma corte que deu-lhe vida foi a mais acertada,
conforme suas palavras:
“Ao ver que a
justiça queria me atar aos autos como um Prometeu tropical acorrentado,
entregue à fúria dos abutres, decidi reagir frontalmente, refazendo os termos
da condenação maliciosa e malsã. Duvido que qualquer dos meus algozes,
fantasiados de piratas fundiários ou envergando togas sebosas, imaginasse essa
reação. Um réu foge da sentença quando ela o pune. Mas o pagamento de
indenização ao grileiro pelo “crime” de chamá-lo de grileiro é nódoa que
pertence ao poder judiciário paraense, não a mim. Quem vai ter que responder ao
tribunal maior, o da história, será a justiça do Pará... Ao pagar a indenização,
devolvi ao judiciário o que lhe é devido: a responsabilidade pela infâmia”. (Belém,
20.03.2013)
Nos dossiês
publicados sobre o caso no ano anterior, o jornalista nos mostra em detalhes
como o Conselho e a presidência do Tribunal alimentaram o processo de uma
sentença fraudulenta por longos sete anos e nove meses, ao arrepio do Código de
Ética da Magistratura, sabendo-a ilegal por constatação feita e reiterada dentro
da instituição judiciária. Ainda assim o Tribunal o condenou com a mesma
sentença original, sem correções, e aceitou o dinheiro recolhido junto à
sociedade.
CARNAVALIZAÇÃO NO TRIBUNAL DA INFÂMIA
O desmonte moral do
Tribunal perante a sociedade começa a se dar com o debate público provocado
pela reação intempestiva e escandalosa do juiz, autor da sentença, à declaração
de suspeição interposta pelo jornalista em fevereiro de 2012. Declarando-se
também ofendido ele vai às páginas de seu facebook, onde se apresenta sob o codinome
de “Duque de Capanema” para junto à sua rede de amigos humilhar o jornalista-réu
com ofensas verbais e debochar do próprio poder judiciário, alegando que o
jornalista insinuara, com seu pedido, que ele fora corrompido pelo empreiteiro.
Ora, quem ler a
história infame desta sentença, desde o primeiro ato do juiz na condição de
substituto até suas declarações de que tinha interesses pessoal na causa, e de
que sentenciara sem ter lido o processo, percebe que o jornalista tinha razões
de sobra para suspeitar da seriedade e imparcialidade do magistrado *
A questão que se
coloca é: como é que uma sentença fraudulenta driblou filtros internos e
controles deliberativos sobre a ação de um juiz dentro de um Tribunal? A
resposta a que chegou o movimento de solidariedade ao jornalista foi de que a
decisão de condená-lo nesta ação foi política e a motivação de todas as ações
contra ele é de natureza política. Como definido numa petição endereçada ao
Conselho Nacional de Justiça, o massacre judicial que lhe foi imposto é “fruto
desta simbiose de ação política entre empresários do ramo da comunicação, (...)
grileiros de terra e juízes malfeitores”; constata-se que “juízes e
desembargadores estão agindo mancomunados com os autores do processo contra o
jornalista no sentido de pôr um fim à edição do seu Jornal pessoal”. Por
conseguinte, a instrução e o trâmite formal do processo em questão não passaram
de uma peça de ficção, haja visto que o veredicto final já era sabido: a
condenação do réu, tal qual no medieval tribunal da Inquisição, onde o
inquisidor tem uma ampla margem de arbítrio pessoal. Isso mostra ainda que o
judiciário pode tirar partido da burocracia de que se reveste, e converter o processo
num dispositivo de tortura que se arrasta por anos a fio contra o réu-já-condenado.
Em um de seus
livros, o jornalista chama a atenção para o fato de que o teor das suas sentenças
quase sempre não se distingue do teor das ações. E que “as ações foram todas
recebidas, mesmo quando arguidas de ineptas, sendo rejeitadas todas as preliminares
contra elas opostas, ainda quando solidamente fundamentadas. E as sentenças
condenatórias acatam integralmente os pedidos, quando não os excedem”. O acolhimento
das ações sem restrição, o exceder-se em cobrança de obrigações para além do
que pede o autor da ação e a recusa do Tribunal em acatar o contraditório do
jornalista, ou seja, de exercer o seu papel de arbitragem no sentido de buscar provas
e construir argumentações para inocentar o réu e não o contrário, aponta para a
subsunção do Tribunal aos grupos de interesse
que, de fora da instituição, demonstram poder de decidir por ele o destino do
réu, desmoralizando a instituição perante a sociedade, como neste caso
emblemático. Indica também que há interesses corporativos que agem no interior
do próprio Tribunal no sentido de manter o jornalista na condição de um
réu-condenado-a-priori.
Por conseguinte,
menor será o sofrimento do réu quanto mais rápido ele se livrar do processo e
do tribunal subsumido. E o caminho mais rápido é a “boca do caixa”, ainda mais
quando os postulantes externos da pena são movidos pela sede de dinheiro.
Com tal desfecho,
o processo de julgamento do suposto uso abusivo da liberdade de imprensa
converte-se na negação do valor moral de arbitragem, negação expressa no
aprisionamento processual do réu, para dele auferir uma renda monetária e um
pouco de divertimento, às custas de seu sofrimento. Isso é tanto mais grave
quando se trata do Jornal Pessoal, um jornal alternativo que pratica uma recusa
radical à publicidade e à renda monetária que dela advém, desde a sua criação.
Portanto, uma recusa a qualquer tipo de aprisionamento ideológico que possa
estar atrelado ao valor-dinheiro, independentemente da lisura de sua origem como
valor.
Ao fim, abre-se o
pano de boca do tribunal-teatro e revela-se a torcida organizada dos cúmplices
que assistem ao julgamento do réu no camarote dos bastidores, com direito à
informação privilegiada saída quente do forno do diabólico tribunal, via
circuito-fechado do facebook e na voz escancarada do juiz infame travestido de Duque
de Capanema. E lá está, na rede de “amigos queridos” do juiz, a autora das
cinco primeiras ações judiciais contra o réu, fato que escancara mais um motivo
da suspeição levantada pelo réu, ou seja, a amizade do juiz com aqueles que
primeiro o condenaram na justiça: os irmãos Maiorana.
Duques e reis,
piratas de quitandas, secos & molhados de grileiros, festins; um cenário de
alegorias e carnavalização de dar inveja a um Glauber Rocha. Mas a sociedade
vai ao revide. Revelada a identidade do juiz aos internautas, o Tribunal cai na
malhação do povo convertendo-se em alvo de pilhéria. O magistrado travestido de
Duque faz as vezes de um “bobo da corte” provocando sentimentos mistos de raiva,
indignação, riso trágico a quem assiste o seu espetáculo de impropérios. Ele é
acuado pela opinião pública em prosa e verso: “Duque de Capanema, estás num
beco sem saída, não percebeste ainda que tua nobreza jaz na sarjeta, decaída? Vai
pentear macaco, Excelência”, provoca um internauta. “Que vá pentear (ou
pentelhar?) macacos”, instiga o outro numa rede social em solidariedade ao
jornalista. O Tribunal mantém-se inerte e indiferente à reação popular, à
repercussão do caso nos canais alternativos e na mídia impressa, à intensificação
do debate na esfera pública. Como pano de fundo do cenário local, circulam pelo
país afora denúncias saídas da voz de uma magistrada, titular do Conselho Nacional
de Justiça, de que por trás de semblantes sisudos escondem-se “bandidos de
toga”. A motivação de tal fala teria sido justamente um caso ocorrido no
Tribunal do Pará, que obrigou a intervenção imediata da titular do Conselho
para evitar dano grave ao patrimônio público. E já não é o grileiro, é outro....
Eis que uma face
inesperada do Tribunal do Pará desfila sua infâmia para o Brasil e o mundo
usando a novíssima passarela das redes sociais. No sentido inverso do fluxo,
arejando o ar pesado dos horrores, a voz de um anjo anuncia, mais uma vez, o
tributo ao jornalista Lúcio Flávio Pinto, pela seriedade e competência do seu
trabalho, e um prêmio de reconhecimento ao Jornal Pessoal, produzido a quatro mãos,
mãos de amigos-irmãos, como modelo e referência de jornalismo amazônico. Enquanto
o Brasil e o mundo não para de lhe conceder o diploma da ética jornalística e
do valor profissional de seu trabalho, o Tribunal do Pará só deseja mantê-lo
produtivo e rentável na esfera processual para alimentar o cofre e os prazeres
de seus insaciáveis comparsas, à base de sentenças e condenações de valor
monetário.
Se Belém fosse a
Grécia antiga e pensasse segundo seus valores morais e suas categorias de
julgamento, os personagens principais deste dramático enredo seriam definidos
como hipócritas e cínicos**, figuras distantes eticamente, onde o cínico “se
esforça para guindar o sujeito – por um exemplo radical que é a sua própria
vida – do estado de estultice. Já o hipócrita luta pela manutenção desse
estado, pois nele ele é o senhor”, senhor que se quer soberano entre nós!
PELO FIM DA PERSEGUIÇÃO POLÍTICA...
Ativo, inquieto e
curioso, o jornalista rejuvenesce e nos surpreende aos 65 anos ao deixar-se
capturar com entusiasmo de menino pelas novas tecnologias da comunicação em
rede. Dizem que são as crianças os que melhor dominam essas tecnologias
digitais que se superam a toda hora. Se assim é, Lúcio se reinventa criança na
escrita virtual. Há um ano ele mergulhou na comunicação ágil do facebook e do
blog, feitos sob medida para a sua escrita veloz, curta e direta, para ter
aonde ir, como lembra o nosso poeta Max Martins: ir ao encontro do leitor que
está à sua espera, o leitor que ele nunca imaginou alcançar nos quatro
quadrantes do mundo. Mas este mesmo blog que o leva tão longe na era da comunicação
globalizada está roubando os leitores locais do JP, e ameaça a sobrevivência do
jornal em Belém. É a primeira ameaça de natureza externa e tecnológica ao
jornal. Mais um desafio a encarar e a vencer.
Mas, para além do
jornal e do jornalismo, é inegável que Lúcio Flávio Pinto demonstra um profundo
compromisso ético com a sociedade paraense, essencial ao exercício da boa
política. Não seria a hora de iniciarmos uma campanha pelo arquivamento das
cinco ações que restam contra ele e que, somados os valores em dinheiro,
alcançam a cifra de quase um milhão de reais?
* Os detalhes a respeito podem ser encontrados nos 3 dossiês
escritos pelo jornalista abordando a questão: Grilagem: a pirataria nas terras da Amazônia (n. 1, março 2012), Eu acuso! (n. 2, março 2012) e Uma voz amazônica há 25 anos (n. 4,
setembro 2012).
** Cf. Tony Hara.
“Estilo de vida e a verdade: o exercício ético do hipócrita e do cínico”. Verve
– Revista do NU-SOL/PUC-SP n. 8, 2005, p. 230-241.
Marly Silva. Socióloga, professora do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UFPA.
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