PARA O ESTADO DE EXCEÇÃO
O MEDO É UM BUMERANGUE
Donatella Di Cesare
Publicado em: «Antinomie»
| 29. 2. 2020
Tradução: Davi Pessoa
Será um acaso que o
pânico tenha explodido, especialmente, nas regiões governadas pela Liga do
Norte, onde há muito se estimula o ódio, onde se aponta o imigrante como
inimigo público, portador de todas as doenças? Muitas pessoas se perguntam. E a
questão parece encontrar confirmação nas declarações recentes dos governadores
de plantão. Com um passe de mágica, puxa-se uma pequena máscara para se cobrir,
"auto-isolamento", para se declarar em risco, para si e para os
outros, incutindo assim o medo novamente - como se a máscara em suas mãos já
não se transformasse realmente em máscara, e tudo assume contornos cômicos.
O outro reativa as
discriminações habituais – nós somos superiores, eles, inferiores, nós somos
saudáveis, eles, doentes, nós somos limpos, eles, sujos - e, desta vez,
chega-se à grotesca hipérbole dos "ratos vivos", a famosa iguaria
chinesa que todos conhecem. É um pouco assustador falar aqui de "estado de
exceção", o paradigma de governo através do qual podemos ler o mundo
atual, como Giorgio Agamben nos ensinou com maestria, reativado por ele
recentemente por aqui (em 26 de fevereiro passado).
Ao contrário do que
alguém argumentou, o paradigma permanece em sua validade. Por outro lado, agora
é prática diária: os procedimentos democráticos são suspensos por disposições
tomadas no cerne da emergência. Um decreto, aqui, outro decreto, ali: assim,
cidadãs e cidadãos acabam por aceitar "medidas" que deveriam garantir
sua segurança, mas que, de fato, limitam severamente sua liberdade. As medidas
tomadas nos últimos dias pelo governo e regiões - em ordens esparsas - são
emblemáticas. Chega-se até o ponto de fechar os locais de cultura, proibir
manifestações e reuniões. São "medidas" que têm – inútil dizê-lo - um
sabor autoritário e um caráter perturbador.
Mas parece que o
"estado de exceção" não seja suficiente para um mundo tão complexo
quanto o globalizado, onde o medo agora desempenha um papel político decisivo.
O medo do estranho, a xenofobia, que força, ao mesmo tempo, a erguer barreiras
e muros, no entanto, também pelo medo de tudo o que está do lado de fora, a
“exofobia”, que leva ao enclausuramento no próprio nicho, à imunização, à
proteção de si mesmo, observando tudo o que acontece através da tela
tranquilizadora.
A pulsão por
segurança é fomentada. Assim como fomentada é aquela que algumas pessoas trocam
por indiferença, como se se tratasse de uma questão ética, e que é, antes, uma
tetania afetiva com um tanto de razão de Estado. Não há dúvida de que o medo é
usado sinistramente para governar. Precisamente por esse motivo, a soberania,
sobretudo aquela anti-imigrantes, não é uma reedição do antigo nacionalismo. É
um fenômeno novo: alavanca o medo do outro, aumenta o alarme do que vem de
fora, a ansiedade da precariedade, o desejo de ser imune a ele.
Mas esse é apenas um
aspecto. Porque o governante, que brinca com o fogo do medo, acaba sendo
queimado por ele. Enquanto acredita que está administrando o ódio aos poucos,
gerenciando devidamente o medo, tudo escapa de suas mãos. Este é o ponto: a
governança, que gostaria de governar sob a bandeira do estado de exceção, é por
sua vez governada por aquilo que se torna ingovernável. É essa inversão
contínua que é perturbadora, que impressiona. O modelo aqui é o da técnica:
quem a emprega, é empregado, quem dela dispõe, é deposto.
A democracia
imunitária é, portanto, uma forma inédita de governança, na qual a política, reduzida
à administração, por um lado, se refere aos ditames da economia planetária, por
outro, se auto-suspende abdicando da ciência - "deixemos os especialistas
falarem!" - que se imagina objetiva, verdadeira, decisiva. Como se a
ciência fosse neutra e neutral, como se ela não estivesse há muito tempo
estritamente ligada à técnica, altamente tecnicizada.
Assim, o Estado de
segurança mostra-se um Estado médico-pastoral que garante a imunização ao
cidadão-paciente, pronto, por seu lado, a seguir - entre o direito ao
desinfetante e a proibição de aglomeração* - todas regras higiênico-sanitárias
que o protegem do contágio, isto é, do contato com o outro. Não se sabe onde
termina o direito e onde começa a saúde.
O coronavírus, esse
vírus soberano já no nome, tira sarro da soberania de exceção, que deseja
grotescamente tirar proveito dele. Escapa, brilha, passa além, atravessa as
fronteiras. E se torna metáfora de crise ingovernável, de uma queda
apocalíptica. Mas o capitalismo, sabemos, não é um desastre natural.
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*[A filósofa faz uso de dois termos semelhantes para provocar contraste: "amuchina", um desinfetante, usado agora por muitos italianos, e "ammucchiata", amontoamento (mas também "orgia", "suruba"!)].
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