3/01/2020

Coronavírus IV. Debate: Donatella Di Cesare



PARA O ESTADO DE EXCEÇÃO

 O MEDO É UM BUMERANGUE


Donatella Di Cesare

Publicado em: «Antinomie» | 29. 2. 2020


Tradução: Davi Pessoa











Será um acaso que o pânico tenha explodido, especialmente, nas regiões governadas pela Liga do Norte, onde há muito se estimula o ódio, onde se aponta o imigrante como inimigo público, portador de todas as doenças? Muitas pessoas se perguntam. E a questão parece encontrar confirmação nas declarações recentes dos governadores de plantão. Com um passe de mágica, puxa-se uma pequena máscara para se cobrir, "auto-isolamento", para se declarar em risco, para si e para os outros, incutindo assim o medo novamente - como se a máscara em suas mãos já não se transformasse realmente em máscara, e tudo assume contornos cômicos.

O outro reativa as discriminações habituais – nós somos superiores, eles, inferiores, nós somos saudáveis, eles, doentes, nós somos limpos, eles, sujos - e, desta vez, chega-se à grotesca hipérbole dos "ratos vivos", a famosa iguaria chinesa que todos conhecem. É um pouco assustador falar aqui de "estado de exceção", o paradigma de governo através do qual podemos ler o mundo atual, como Giorgio Agamben nos ensinou com maestria, reativado por ele recentemente por aqui (em 26 de fevereiro passado).

Ao contrário do que alguém argumentou, o paradigma permanece em sua validade. Por outro lado, agora é prática diária: os procedimentos democráticos são suspensos por disposições tomadas no cerne da emergência. Um decreto, aqui, outro decreto, ali: assim, cidadãs e cidadãos acabam por aceitar "medidas" que deveriam garantir sua segurança, mas que, de fato, limitam severamente sua liberdade. As medidas tomadas nos últimos dias pelo governo e regiões - em ordens esparsas - são emblemáticas. Chega-se até o ponto de fechar os locais de cultura, proibir manifestações e reuniões. São "medidas" que têm – inútil dizê-lo - um sabor autoritário e um caráter perturbador.

Mas parece que o "estado de exceção" não seja suficiente para um mundo tão complexo quanto o globalizado, onde o medo agora desempenha um papel político decisivo. O medo do estranho, a xenofobia, que força, ao mesmo tempo, a erguer barreiras e muros, no entanto, também pelo medo de tudo o que está do lado de fora, a “exofobia”, que leva ao enclausuramento no próprio nicho, à imunização, à proteção de si mesmo, observando tudo o que acontece através da tela tranquilizadora.

A pulsão por segurança é fomentada. Assim como fomentada é aquela que algumas pessoas trocam por indiferença, como se se tratasse de uma questão ética, e que é, antes, uma tetania afetiva com um tanto de razão de Estado. Não há dúvida de que o medo é usado sinistramente para governar. Precisamente por esse motivo, a soberania, sobretudo aquela anti-imigrantes, não é uma reedição do antigo nacionalismo. É um fenômeno novo: alavanca o medo do outro, aumenta o alarme do que vem de fora, a ansiedade da precariedade, o desejo de ser imune a ele.

Mas esse é apenas um aspecto. Porque o governante, que brinca com o fogo do medo, acaba sendo queimado por ele. Enquanto acredita que está administrando o ódio aos poucos, gerenciando devidamente o medo, tudo escapa de suas mãos. Este é o ponto: a governança, que gostaria de governar sob a bandeira do estado de exceção, é por sua vez governada por aquilo que se torna ingovernável. É essa inversão contínua que é perturbadora, que impressiona. O modelo aqui é o da técnica: quem a emprega, é empregado, quem dela dispõe, é deposto.

A democracia imunitária é, portanto, uma forma inédita de governança, na qual a política, reduzida à administração, por um lado, se refere aos ditames da economia planetária, por outro, se auto-suspende abdicando da ciência - "deixemos os especialistas falarem!" - que se imagina objetiva, verdadeira, decisiva. Como se a ciência fosse neutra e neutral, como se ela não estivesse há muito tempo estritamente ligada à técnica, altamente tecnicizada.
Assim, o Estado de segurança mostra-se um Estado médico-pastoral que garante a imunização ao cidadão-paciente, pronto, por seu lado, a seguir - entre o direito ao desinfetante e a proibição de aglomeração* - todas regras higiênico-sanitárias que o protegem do contágio, isto é, do contato com o outro. Não se sabe onde termina o direito e onde começa a saúde.

O coronavírus, esse vírus soberano já no nome, tira sarro da soberania de exceção, que deseja grotescamente tirar proveito dele. Escapa, brilha, passa além, atravessa as fronteiras. E se torna metáfora de crise ingovernável, de uma queda apocalíptica. Mas o capitalismo, sabemos, não é um desastre natural.

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*[A filósofa faz uso de dois termos semelhantes para provocar contraste: "amuchina", um desinfetante, usado agora por muitos italianos, e "ammucchiata", amontoamento (mas também "orgia", "suruba"!)].



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