2/08/2011

ENTREVISTA - DAVID LAPOUJADE




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Por que o livro só traz um texto inédito, “A Ilha Deserta”?
David Lapoujade: Todo o trabalho de Deleuze se ordenava em torno da composição de seus livros. Frequentemente, os artigos existiam apenas numa estreita relação com os livros que ele estava fazendo. Isso se pode verificar mais e mais, à medida que a obra avança. Ora, como ele dá tudo que pode a cada um de seus livros, ele não dispõe de nenhuma reserva que poderia servir em outro lugar. Quaisquer que sejam as razões, os inéditos supõem uma lógica de poupança bem estranha a Deleuze.



Lapoujade: Pouco e de maneira sub-reptícia. Nós a encontramos, sob a forma de alusão, em “O Método de Dramatização”, em “Diferença e Repetição”. Mais tarde, Deleuze evocará os arquipélagos ou os atóis, mas sob um outro ponto de vista.
Muito próximo da prosa poética, “Causas e Razões das Ilhas Desertas” é um texto muito bonito, mas misterioso também. Como lê-lo dentro da filosofia de Deleuze?
Lapoujade: Esse texto foi uma encomenda para o número especial de uma revista de viagens.... Me parece que, em “A Ilha Deserta”, Deleuze esboça já uma variação sobre o tema da diferença que deveria acompanhá-lo até “Diferença e Repetição”. A questão que coloca a ilha deserta poderia ser a seguinte: em que uma ilha deserta constitui uma diferença nela mesma?
Por que Robinson é um personagem relativamente frequente no pensamento deleuziano?
Lapoujade: Uma coisa é certa: não é por fascinação. Deleuze o diz claramente nesse artigo, quando ele afirma que todo leitor sadio sonha ver Sexta-Feira comer Robinson. Se nós o encontramos mais tarde, é sob a forma do Robinson perverso descrito por Michel Tournier em “Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico”. Deleuze vê aí elementos para uma concepção filosófica do outrem. No fim das contas, Robinson não interessa a Deleuze senão pervertido ou devorado.
Descobre-se nos textos reunidos a maior parte dos temas deleuzianos desenvolvidos mais tarde, ou ao mesmo tempo, nos livros conhecidos. Mas será que podemos dizer que há aí também temas que não tiveram posteridade no seu trabalho?
Lapoujade: Eu creio com efeito que o encontro com Guattari, que é frequentemente subestimado, alterou bastante as coisas no trabalho de Deleuze. Até “Diferença e Repetição” e “Lógica do Sentido”, lançados em 1969, Deleuze tentava construir uma filosofia próxima de um certo estruturalismo. A noção de estrutura estava no centro de seus dois livros, mesmo se ele fazia dela um uso um pouco distante daquele de Lacan ou Lévi-Strauss. Havia paralelamente todo um fundo que se avolumava, um fundo intensivo, que não vai explodir realmente senão com o encontro com Guattari. Então, Deleuze renunciará a suas construções estruturais para repensar tudo em termos de fluxo, de desejo, de agenciamento. Assim, vão desaparecer a dupla profundidade/superfície deste período, mas também a noção de simulacro (talvez por causa do que ela se tornou com Baudrillard) ou ainda conceitos saídos da leitura de Lacan.
Um célebre texto sobre o estruturalismo (“A quoi reconnait-on le structuralisme?”) está republicado em “A Ilha Deserta”. O que de fato o estruturalismo trouxe à filosofia de Deleuze?


Lapoujade: É uma questão muito difícil, à qual não se pode responder em poucas palavras. Muito, muito esquematicamente, se poderia dizer que a noção de estrutura é aquilo que permite a Deleuze -até 1970- unificar, totalizar o conjunto dos campos que percorre sua filosofia: biologia, arte, matemáticas, linguística, psicanálise etc. Mas, eu repito, seu estruturalismo não se decalca do de Lévi-Strauss, de Lacan ou da linguística. É um estruturalismo dissidente.
Há dois textos muito surpreendentes, ao meu ver, em “A Ilha Deserta”, sobre Sartre e Rousseau, duas figuras que não são muito presentes na filosofia deleuzeana, mesmo se ele deu um curso sobre Rousseau. Por que esses filósofos aparecem tão pouco em Deleuze?
Lapoujade: Você tem razão de dizer que Sartre e Rousseau são pouco presentes em Deleuze. Sem dúvida, Deleuze não era atraído senão pela perversidade de Rousseau, toda a profunda crueldade que anima subterraneamente o discurso virtuoso da “Nova Heloísa”. O resto, a saber, o edifício de seu pensamento político fundado sobre um contrato republicano, deixava Deleuze indiferente. Mas o breve artigo de Deleuze sobre Rousseau deveria ser prolongado. Seria preciso mostrar como Rousseau perverte sua obra política através de sua obra literária, extrai a crueldade do contrato... Para Sartre, o problema é um pouco diferente. Deleuze admirava muito Sartre, porque ele liberava a filosofia de seu fechamento acadêmico. Mesmo a fenomenologia se tornava um pouco viva nos seus escritos. Seus textos sobre a literatura, sobre a atualidade, seus engajamentos políticos criavam uma “corrente de ar”. Enfim, a filosofia saía da Sorbonne...
Até o encontro com Guattari, Deleuze é reticente em relação a Marx e ao marxismo. Ele não se interessava por isso? O que o marxismo de Guattari, ex-trotsquista, trouxe para Deleuze? Ao mesmo tempo, será que a dialética marxista não permanece um problema para a filosofia da diferença?
Lapoujade: Pode-se de imediato lembrar longas passagens sobre Marx em “Diferença e Repetição” que não testemunham nenhuma reticência por Marx, ao contrário. Talvez, nessa época, Deleuze estima que é Althusser que vai mais longe na leitura estruturalista de Marx. Mas é verdade que a questão política embaraça Deleuze, como ele diz numa entrevista de 1969 a Jeannette Colombel. Essa entrevista é instrutiva: sente-se que Deleuze procura pensar a questão política em relação com as intensidades, os afetos, mas que ele não vê ainda como proceder. A resposta não se encontra em Marx. Daí, talvez, sua fraca importância naquele momento. Você tem razão, é Guattari que muda tudo, na medida em que ele concebe o desejo como imediatamente social. Ora, é o caráter social do desejo que permite repensar todo o campo do político. Para isso, eles não têm necessidade de Marx. A importância de Marx, a seus olhos, se encontra além: ela consiste essencialmente na sua análise do capitalismo.
A vulgarização do pensamento deleuziano caminha a passos largos. Nas revistas de arte e nos sites de vanguarda da internet, os críticos falam de “forças”, “velocidades”, “pensamento nômade” etc. Em revanche, não se vê a política de Deleuze-Guattari se impor junto à nova esquerda antimundialista, que é muito mais inclinada às idéias de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, um pensamento muito dialético, como se sabe. Como explicar esta fascinação exercida por Deleuze nos criadores e artistas e que não encontra correspondência nos ativistas políticos?

Lapoujade: Você compreende que não posso responder por eles. Seria interessante perguntar: por que Debord? O que choca, contudo, é que o novo tipo de luta dos movimentos antimundialização -porque é muito novo- não está afastado do que Deleuze e Guattari pensaram sob o termo de “rizoma”, um sistema de rede acentradas, fora de todo sistema de representação, funcionando de modo ao mesmo tempo local e global. De outro lado, o caráter fundamentalmente pragmático das análises e das ações dos “antimundialistas” parece muito próximo também daquilo que Deleuze e Guattari indicam, sobretudo quando eles procuram as “linhas de fuga” de um sistema dado. Estou espantado com aquilo que você me diz de Debord e de sua influência. Seu pensamento é antes de tudo o de um paranóico: o sistema já venceu sempre o que se opõe a ele, já recuperou e integrou sempre aquilo que o contesta. De onde a idéia de que a luta deve ser levada sobre um fundo de derrota primordial. Luta-se, claro, mas com a idéia de que, de todo modo, o combate estará perdido antes, daí uma ironia que se queria “subversiva” com muito de melancolia. Mas quem não vê que aquilo com que sonha todo o sistema é triunfar por antecipação sobre toda luta, toda oposição? Que ele sonha se tornar mais real na vida das pessoas do que o próprio poder de resistência ou os próprios desejos delas? Nós não vivemos numa sociedade do espetáculo, mas numa sociedade real, onde as ações são reais, nas almas e nos corpos. Desse ponto de vista, o pragmatismo dos antimundialistas me parece ir num sentido bem oposto às teses de Debord.
Se fosse possível escolher a questão principal, o desafio, que Deleuze coloca a nossa época, qual seria?
Lapoujade: Não é preciso muito trabalho hoje, com o fascismo que nos impõe a América de Bush, para responder a essa questão. Talvez o mais urgente em filosofia seja tentar fazer da América um objeto filosófico, criar uma espécie de objeto filosófico monstruoso que nos daria pontos de apoio para escapar dele, para saber como resistir e fugir dos modos de vida que nos são impostos. Mas há muitas outras questões possíveis levantadas por Deleuze e Guattari...
Como será composto o segundo volume de textos, “Deux Régimes de Fous” (Dois Regimes de Loucos)?
Lapoujade: Se tudo correr bem, o livro sairá em janeiro de 2003. Ele será tão volumoso quanto o primeiro, conterá alguns inéditos e tocará em questões sensíveis, como os textos sobre Yasser Arafat, a questão do terrorismo através de textos sobre o grupo Baader-Meinhof ou a condenação de Toni Negri durante os anos de chumbo na Itália. Ele deverá também manifestar preocupações mais extensas. Haverá textos sobre música (Boulez), cinema, pintura (Bacon) etc.


Por Alcino Leite Neto


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