2/07/2011

A POESIA / O ROSTO

  

  um excurso em torno de algumas práticas literárias
    Nilson Oliveira


Sempre a instigante e difícil tarefa de pensar as inclinações da poesia contemporânea. Perceber os rumos, a fisionomia, as tendências. Por certo são questões que de tempos em tempos ganham a cena. Todavia não temos certo até que ponto os procedimentos permanecem eficientes para pensar o horizonte literário, uma vez que, pela velocidade dos fluxos, a cena nos parece mais e mais imprecisa. Do mesmo modo em que se movimentam as forças em evidência (escritas, nomes, significados), se multiplicam também as forças que escapam (experimentações outramentos, linhas de fuga) para outras vias, outras problemáticas. Os projetos em evidência, moldados por uma estética da representação, parecem cada vez mais uniformes. As tendências, permeáveis aos efeitos do tempo, edificam paisagens que muito se repetem. Dessa maneira, na tentativa de enunciar um novo formato, alguns agenciamentos (comentadores, críticos, jornalistas), mesmo os mais atentos, apenas restauram a fórmula. A repetição, nesse âmbito, é condicionada ao estatuto do mesmo. Não obstante, numa relação que só confirma o estado das coisas, se proliferam, em minúsculas apostas, as investidas de uma comunidade subterrânea – as forças imperceptíveis – trafegando entre turbulências e possibilidades, operando num cenário, fora das corporações e do jornalismo cultural, no qual os ventos sopram conforme a dinâmica do acontecimento.  Nessa direção a cena, sem dúvida, se desloca, mas dentro de um contexto mais complexo, num espaço liso, povoado por forças de dentro e de fora, cuja fisionomia é impossível mensurar, pois neste contexto, a imagem do pensamento é imprecisa. Não é histórica, tampouco familiar. Não tem o rosto de personagem algum, contudo sempre devém, pois é imanente ao jogo da criação. Jogar este jogo implica em afirmar a força da impessoalidade, pois escrever é instaurar processos de subjetivação, nesses processos a vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um rosto que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro, pois é pura potência, singularidade, modo de vida... O que não consiste na demarcação dos limites de um eu, enclausurado e interior, mas na idéia de que ele é o efeito de uma função ou operação que sempre se produz na exterioridade desse eu. O sujeito já não é uma unidade-identidade, mas envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato com o exterior. Neste horizonte, além da literatura, não há garantias de nada. Portanto, a insistência em instaurar um tipo de modelo que opere baseado em níveis de seletividade, que por sua dinâmica, sempre enquadra ou afugenta as expressões da diferença, nos parece uma vontade de representar, ou melhor, de produzir uma imagem cujo reflexo é uniforme.  Nosso interesse neste pequeno ensaio é pensar, a partir de pontos remotos, pequenas práticas literárias. Mas como pensar isso? Percorrendo uma via que ao invés de enquadrar produz encontros, trocas, numa relação ativa, que parte da crítica para uma transvaloração, no sentido Nietzschiano, cujo fim último é a afirmação das diferenças e da obra como criação. Experiência que afeta e se deixa afetar, deslizando por entre as fendas que proliferam na superfície do espaço literário. Trata-se de um gesto, um movimento de escrita.
Com efeito, seguindo a maneira dos afetos, vemos cintilar um conjunto de pequenas ações que efetuam práticas diversas na cena literária. São acontecimentos, experimentações que se movem na outra margem da cena, fora das grandes movimentações, numa superfície plana, entre combates, estilos, linhas, nas quais uma comunidade de rostos engendra práticas limítrofes que acontecem entre a restauração e a destruição da experiência. Algo no âmbito do que pode a escrita, ou seja, um combate no coração da questão literatura. A idéia de rosto aqui não está associada à rostidade, referência molar, que opera num processo de rostificação de todo o corpo, produzindo identidades, raízes, modos fixos. E sim ao ROSTO como expressão do que se revela / paixão da linguagem. O rosto nada tem a ver com a face. Mas “o rosto que assume abaixo de si o abismo da própria comunicabilidade e consegue expô-lo sem temor nem complacência. A natureza só adquire um rosto no ponto em que se sente revelada pela linguagem”. No rosto, seu ser exposto é traduzido na palavra: como diz Agamben: O rosto não é simulacro, no sentido de qualquer coisa que dissimula ou encobre a verdade: ele é a simultas, o estar-junto dos múltiplos semblantes que o constituem, sem que algum desses seja mais verdadeiro que os outros. Compreender a verdade do rosto significa tomar não a semelhança, mas a simultaneidade dos semblantes, a inquieta potência que os mantêm juntos e os reúne em comum. Assim, o rosto de Deus é a simultas dos semblantes humanos, a “nossa efígie” que Dante vira no “vivo lume” do paraíso.[1] 
Votando ao ponto em questão, nossa abordagem segue na direção dessas experiências, tendo como mote pensar o sentido da própria experiência do fazer poético, o inexperienciável até o limite do pensamento ou na própria infância que encontra seu lugar lógico em uma exposição entre experiência e linguagem.  Desta feita, a questão que se coloca para pensar essas experiências vem de uma dupla indagação: Como a poesia é possível? Como resiste a poesia? Dividimos estas questões em dois planos, que ao nosso modo, vamos atravessar, percebendo os desdobramentos de cada questão. 

COMO A POESIA É POSSÍVEL.
Em 2005 os cineastas Andrea Menezes e Marcelo Masagão edificaram uma experiência que nos parece a das mais singulares no que diz respeito ao modo de pensar o lugar da escrita na perspectiva daquele que escreve. Trata-se do Filme Zero Não é Vazio, que tem como mote as práticas da escrita e sua íntima relação com as pessoas que escrevem. Mas estas experiências se realizam a partir de uma perspectiva não convencional, ou seja, por fora do horizonte do estabelecido como autorizado. O caminho do filme é outro. Percorre os escrevinhadores compulsivos. Aqueles que no aberto da cidade travam modos diferenciados de experiências com a escrita. Trata-se de uma comunidade de anônimos, visíveis, ausentes, por vezes descolados da razão, mas por vezes inteiramente em articulação com um fino repertório, todos visceralmente em combate com a escrita. Desse modo as figuras do filme gravitam como personagens de uma obra cujo centro é a própria vida. Sim, pois a escrita para estas figuras funciona como uma questão vital. Assim, em Zero Não é Vazio, “Gregório Delgado Carneiro” relata que começou a escrever por uma razão simples, uma carta para a mulher, mas durante o momento em que escreve a carta foi abatido uma força e não parou mais de escrever. Escreveu um mundo de cartas, descobriu a rima, refugiou-se no mundo das palavras. A escrita de Gregório não obedece à lógica da gramática, escreve sem pontuação, num fluxo de rimas como se traçasse uma obra só. Gregório escreve como quem fala, nomeando as presenças do mundo no instante em que elas estão sendo criadas: O verbo se fez carne em cristo. A carne se fará verbo em mim, diz um dos poemas de Gregório. Tatiana Maia busca alcançar através da escrita de suas máquinas o ideal científico de um corpo sem falhas. Inventa máquinas complexas e a elas atribuiu o poder de restituir a vida e manipular o tempo. Tatiana concebeu diversas máquinas: Máquina Salva-Vidas Infindus Infinitus / que transforma morte em vida; Máquina Microsônica / que regenera os órgãos do corpo. Tatiana pesquisa, lê, vive enfronhada na sua plantação de máquinas. O Modo de funcionamento das máquinas é minuciosamente explicado por uma grafia que lentamente vai cobrindo páginas, sentidos, razão. Tatiana fez da escrita uma máquina e nela vai a um só tempo esfacelando os sentidos e instaurando uma experiência com a escrita.   Orlando encontra na existência mais de um sentido para as palavras, um defeito da língua, e consagra a si a tarefa de corrigir esses defeitos provendo a existência de um único significado para cada palavra, feminilizando-as, dando às palavras uma sonoridade feminina. Orlando, modificando seu próprio nome, passa a se chamar Orlanda, depois Orlanda Travestá.  Orlando escreve nos papeis dos maços de cigarro que consome pequenos bilhetes e despeja cuidadosamente nas caixas de correios da vizinhança do bairro onde mora. Orlando é o carteiro de uma correspondência divina, paz cura, sexo cura. Fumar cigarro é amor porque dá prazer; assim diz uma das suas cartas. O Condicionado é a personagem que inventou seu próprio sentido de duração. O tempo para ele foi alterado desde que saiu dos calendários, acontece numa cadência que desarruma o sentido de linearidade, O Condicionado é um desviante do tempo, considera-se “um industrial fabricante de história”. Não lê jornal, nem acompanha os noticiários. Sentado diante de uma cadeira numa avenida qualquer de São Paulo, ele passa o dia trabalhando na escrita cuidadosa do que nomeia “pedacinhos de papel”. Sua tarefa é corrigir o tempo. Assim ele o faz por meio da invenção de um sistema de cálculo presente em cada um de seus escritos. Depois de assinar, coloca o local, o dia e o mês, mas o ano é sempre o mesmo: 1999. Para se localizar, ele acrescenta o que falta. Arturo Gamero a caminho de uma linguagem que desse corpo a sua escrita, forçou o ato de escrever até o seu limite, alcançando o fundo sem fundo da linguagem, investigando uma possibilidade para sua poesia. Nessa direção, num combate intenso entre linguagem e pensamentos engendrou uma experiência singular, que chamou Cerâmica Noturna. Experiência cuja escrita atravessa intensos processos migratórios, percorrendo o vazio, a pintura, o gesto, tornando-se outra coisa. Algo entre o traço e a imagem. Desse modo, Arturo fez do próprio livro um objeto de experimentação no qual os traços, as imagens vão esgarçando os limites da forma, e com isso enunciando outras possibilidades para a poesia, fazendo deste combate uma experiência pelo possível.  Todas as figuras do filme, sem distinção, estão inteiramente vinculadas a um tipo de experiência que nos parece inteiramente singular. Algo que o meio em geral dos escritores perdeu ou abjurou, em função do jogo fácil ou das saídas sem conflito. É claro que a questão é sensível, uma vez que a opção pelo filme pode aparentar um tipo de glamorização da loucura, do psicótico, do fora radical; ou pior, fazer dessas referências um tipo de modelo ideal de experimentação. Não se trata disso, pois sabemos: o fora radical sempre implica em um risco particular a mais: torna-se uma linha de abolição, de destruição, dos outros e de si mesma. A questão é outra, simples: enfatizar que se o escritor quiser traçar um caminho próprio na literatura vai ter que fugir da banalidade e cavar uma experiência, algo da na direção do que só a sua escrita pode. Ou seja, traçar uma experiência na rota do IM-POSSIVEL, portanto, FORA DO POSSÍVEL. Uma experiência na direção do que não está ai, experiência em que a sua escrita da passagem ao outro de si. Não foi exatamente esta a empreitada de Káfka: a literatura inicia quando o eu torna-s ele. Ou Fernando Pessoa: construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu. Kafka e Pessoa: o fundo sem fundo da experiência, digo melhor, escritores que atravessaram, na literatura, sem receios, o limite da experiência. Parece-nos que este é o ponto limite do filme de Marsagão e Andrea Menezes: todos os personagens que atravessam o filme estão envoltos por um tipo de experiência com a escrita.
O Filme de Andrea Menezes e Marcelo Masagão, a partir dessa comunidade obsessiva da escrita, nos traz um feixe de pequenos indícios que comprava que o possível da experiência, na poesia, só tem vazão no exercício da criação. Evidência de que a Arte, enquanto modo de expressão, produção de linguagem e pensamento, é uma invenção que só ganha corpo se vivenciada ao vivo no coração da obra. Daí o poder de contágio e de transformação da ação poética. É o mundo que está em obra por meio desta ação. Não há então porque estranhar que a poesia indague sobre o presente e participe, no seu tempo, com suas questões, das mudanças que fraturam a noção de atualidade.

O QUE RESISTE    
O conceito de cena. Do ponto de vista literário, cena é o conjunto de agenciamentos que se movem dentro de um espaço (literário ou qualquer outro), todavia sem constituir uma forma fixa. A cena é o que está em movimento, operando na seguinte lógica: FORMA / DESFORMA. Desse modo a cena é sempre incompatível com o que fecha no sentido monolítico da coisa. Não existe cena no singular, sempre no plural. As cenas estão pulverizadas no interior da cidade, acontecendo em múltiplas formas: cena literária, cena teatral, cena de rock. E dentro de cada cena, diversas variações, cortes, fissuras, rachaduras – DESFORMAS – que remetem a outras cenas, menores, minúsculas, mas sempre em movimento. O sentido das cenas é o encontro, ou seja, criar, difundir, agenciar. É esse movimento que faz a coisa acontecer. E é dessa maneira, na lógica do acontecimento, que percebo o movimento das pequenas editoras espalhadas pela superfície do espaço literário. Seu número aumentou de maneira impressionante nos últimos anos, a maioria publicando literatura e poesia, desempenhando um trabalho cada vez mais importante, tendo como critério evidente valores inteiramente literários, trazendo a público novos autores, fazendo a literatura respira. Algumas com formas mais delineadas (como a editora Lumme / e outras), uma pequena estrutura, pequenos esquemas de distribuição, pequenas coleções, constituindo, um tipo de fazer menor, o qual engendra várias linhas de fugas para a cena da literatura. É por essas vias que a literatura resiste. Outras (Oficina Raquel, Dulcinéia Catadora / e algumas outras) agenciadas por um círculo quase invisível, operando numa máquina que remete o fazer tipográfico, preenchendo o espaço com suas minúsculas tiragens e seus modos artesanais, minuciosos, exigentes, dando mais vida à literatura, constituindo por sua vontade de potência, uma força que faz vibrar. É assim que vejo o trabalho das pequenas editoras. É um corajoso combate de resistência pela literatura. Por que resistem? Porque estão associadas diretamente com um trabalho de criação. A resistência, nesta perspectiva, não se restringe a uma individualidade, mas reporta-se a um conjunto de singularidades, ou melhor, processos de singularização. Os processos de singularização se dão pela articulação de diferentes estratégias, mas sobremodo, por meio da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outras percepções, podendo ser considerado como uma forma de combate frente aos moldes previamente determinados. O Ato de resistir é, sem dúvida, um modo da invenção de possibilidades, de territórios outros, capazes de resistir ao mesmo. É desse modo que percebo o fluir dessas pequenas multiplicidades de agenciamentos editoriais.
1 AGAMBEN, Giorgio. Il volto. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica. Bollati Boringhieri: Torino, 1996, p. 74-80



Nilson Oliveira (Belém-PA) é escritor, ensaísta, editor da Revista Polichinello. Autor A Literatura e Os Possíveis da Escrita Literária / Editora Lumme / 2010. revista.polichinello@gmail.com




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